Biodiversidade brasileira: uma aliada no combate ao Aedes aegypti
Na rica biodiversidade brasileira reside um potencial significativo de combate ao Aedes aegypti. Compostos naturalmente encontrados em plantas e outros organismos, como fungos, demonstram, em pesquisas, eficácia para destruir os ovos, a larva e o mosquito transmissor de arboviroses. No momento em que os casos de dengue batem recorde no país — até o fim de abril, já foram mais de 4 milhões — e quando o inseto desenvolve cada vez mais resistência aos químicos tradicionais, pesquisadores destacam a urgência de se investir em bioprodutos de origem nacional.
Com 5% da biodiversidade do planeta, o Cerrado é uma fonte abundante de compostos naturais contra o Aedes, que, além da dengue, é vetor da zika, da chikungunya e da febre amarela. Entre as plantas com potencial está o pequi, símbolo do bioma e tradicionalmente usado na culinária e na fitoterapia, principalmente no Distrito Federal, em Goiás e no norte de Minas Gerais.
Um artigo recém-publicado no Journal of Food and Nutrition Research por pesquisadores da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do MS (IFMS) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) demonstrou que a polpa do fruto Caryocar brasiliense, o pequi, tem ação larvicida contra o Aedes, ao mesmo tempo em que não é tóxico para outros organismos.
Abundância
“A escolha do pequi se deu devido ao fruto ser abundante no Cerrado, às suas propriedades bioativas e por não haver estudos que testaram esse fruto no Aedes aegypti”, explica Raquel da Silva Vieira, pesquisadora da UFMS e autora correspondente do artigo. Ela conta que a planta desperta o interesse farmacológico porque, na polpa e na semente, há substâncias com propriedades antioxidantes, analgésicas e anti-inflamatórias. Também já demonstrou potencial para tratamento de câncer, hipertensão, doenças metabólicas, enfermidades neurodegenerativas e dermatológicas, diz a cientista.
No estudo, os pesquisadores coletaram frutos maduros caídos no chão. A polpa foi desidratada e os caroços passaram por uma estufa, o que facilitou a retirada da amêndoa. Essa parte do pequi foi triturada e formou uma farinha. Todo o material foi, depois, colocado em frascos com solvente etanol, para soltar os compostos.
“Depois, esse líquido foi filtrado e o álcool evaporado. O que sobrou foram dois extratos oleosos, um da polpa e outro da amêndoa do pequi. Neles, estão presentes todas as substâncias bioativas”, conta Raquel da Silva Vieira. Em laboratório, os cientistas testaram a ação dos compostos contra larvas do Aedes aegypti em várias concentrações. A substância foi misturada a uma ração para peixes, da qual o inseto se alimentou. “Observamos mortalidade das larvas do mosquito em todas as concentrações testadas”, relata a cientista.
Barreira
Ao analisar a química da mistura, os pesquisadores descobriram elevados teores de compostos, cuja estrutura molecular consegue ultrapassar a barreira celular do intestino das larvas. Assim, elas morrem. “Os resultados do nosso estudo sugerem que as moléculas do pequi podem ser consideradas uma nova alternativa natural a ser utilizada como controle do mosquito, pois não há risco de toxicidade”, explica Raquel da Silva Vieira. Ela ressalta que mais estudos são necessários antes que a substância seja aplicada no meio ambiente.
Além do pequi, o Cerrado tem muitas outras plantas com ação larvicida contra o Aedes. Uma análise de 24 artigos da literatura científica sobre essas propriedades no bioma constatou o potencial bioativo em 21 espécies de 11 famílias botânicas. Os compostos estão presentes em várias partes das plantas, como casca, folhas, sementes, raízes, frutos e resíduos de madeira, explica a avaliação, publicada na revista Ensaios e Ciências Biológicas Agrárias e da Saúde.
“Nesse estudo, encontramos diversas espécies com várias substâncias larvicidas, e isso é fantástico para a ciência, pois a abundância dessas espécies torna sustentável o uso das substâncias naturais para variados fins”, destaca Raquel da Silva Vieira, também autora correspondente do artigo. Entre as plantas com potencial contra o Aedes, estão sucupira (Pterodon emarginatus), copaíba (Copaifera reticulata), abacateiro (Persea americana) e ipê (Handroanthus impetiginosus). A pesquisadora da UFMS destaca que estudos futuros poderão assegurar o nível de toxicidade dessas espécies e a viabilidade para se tornarem larvicidas eficazes.
Caatinga
Na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), um estudo encontrou potencial em três espécies vegetais para matar a larva, os ovos e Aedes adulto. Ainda não publicada, a pesquisa avaliou os óleos essenciais da jardineira (Alpinia zerumbet), do mastruz (Dysphania ambrosioides) e do cravo-da-índia (Syzygium aromaticum). Essas plantas não são nativas do Brasil, mas são cultivadas em diversas regiões do país, incluindo as inseridas na Caatinga. O trabalho foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (Fapema).
As estudantes de química industrial Thaylanna Lima e de química Marcelle Ataíde, ambas da UFMA, começaram a pesquisar o potencial dos biocompostos há dois anos, sob a orientação e a supervisão dos professores Victor Elias Mouchrek Filho e Gustavo Oliveira. Os testes, realizados neste ano, mostraram que os óleos das plantas combateram as três fases de vida do mosquito, com a vantagem de serem produzidos com um método de baixa energia e custo, o que os torna economicamente viáveis.
“Na fase larval, os produtos causam um tipo de falência respiratória, e o mosquito acaba morrendo. Os biocompostos também atacam a região interna do Aedes, impedindo que consiga coletar o oxigênio”, explica Marcelle. Mesmo que a larva consiga sobreviver, não se desenvolverá, por má-formação. Os óleos têm duas formas de aplicação. “Os produtos têm forma líquida, então podem ser utilizados tanto na água quanto borrifando no ambiente”, explica Thaylanna, esclarecendo que a equipe já solicitou patente dos compostos.
Inseticidas e larvicidas obtidos de óleos essenciais são menos agressivos ao meio ambiente?
Os óleos essenciais são substâncias químicas produzidas pelas plantas, que têm diferentes propriedades além de excelentes “perfumadores” de ambientes. Umas dessas propriedades trata-se exatamente da capacidade de agir como ferramentas no controle de vetores. Frente ao uso de substâncias sintéticas, os óleos essenciais têm duas principais vantagens, essas substâncias naturais são biodegradáveis e mais seguras para aplicação.
O Brasil tem uma biodiversidade imensa. Por que ainda não temos, comercialmente, uma quantidade expressiva de bioprodutos para combater arboviroses?
O processo de substituição de substâncias químicas sintéticas por outras de origem natural cresce de forma acelerada no Brasil. Hoje diversos fabricantes tradicionais já possuem esta alternativa nas suas linhas de produtos. A principal motivação vem da também crescente consciência ambiental da sociedade, que cada vez mais tem optado por produtos mais sustentáveis. Entretanto, um dos limitantes, trata-se do custo ainda superiores aos produtos sintéticos. Esta realidade vai aos poucos sendo alterada com a modernização dos processos de obtenção da matéria prima vegetal e o crescimento do número de empresas dedicadas à produção desses bioprodutos, empresas que fazem parte das chamadas greentechs.
Em um momento de explosão de casos de dengue, acredita que haverá mais incentivos a pesquisas sobre o potencial larvicida de óleos essenciais?
Sim. O Brasil possui excelentes cientistas que se dedicam às pesquisas de produtos naturais, e, momentos como o que estamos vivendo, de agravos à saúde decorrentes desses vetores, somados àquela conscientização ambiental, certamente provocarão políticas públicas que favoreçam as pesquisas científicas e a industrialização desta classe de produtos no país. É importante destacar para o consumidor que, uma vez que a Anvisa exige dos fabricantes a realização testes de eficácia e de segurança em qualquer produto antes de autorizar sua disponibilização para a venda, a população pode confiar em qualquer produto natural devidamente regularizado na agência reguladora brasileira. Outro recado do Conselho dos profissionais da química – CFQ/CRQs: não utilizem produtos clandestinos e nunca façam misturas caseiras, essas misturas podem causar sérios danos à saúde. (PO)
Ubiracir Lima é químico, mestre em produtos naturais, doutor em vigilância sanitária e pós-doutor em tecnologia de formulações. Faz parte do Conselho Federal de Química e é membro titular da câmara técnica de saneantes da Anvisa.
Ocupando 49% do território brasileiro, a Amazônia é um vasto celeiro de bioativos, obtidos não só de plantas, mas de outros organismos. Foi no solo da maior floresta tropical do mundo que a equipe do engenheiro florestal e mestre em ciência, inovação e tecnologia Gleison Rafael Mendonça, da Universidade Federal do Acre (Ufac) buscou mais uma ferramenta de combate ao Aedes aegypti, transmissor de doenças como dengue, zika, chikungunya e febre-amarela.
Os cientistas testaram em laboratório 23 espécies de fungos nativos da Amazônia em ovos com larvas do mosquito. Três, em particular, foram mais eficazes no controle: Beauveria sp., Metarhizium anisopliae e M. anisopliae. Nos experimentos, compostos extraídos dessas cepas fúngicas levaram de três a quatro dias para eliminar o vetor. O resultado do estudo foi publicado no Brazilian Journal of Biology.
Mendonça, autor correspondente do artigo, conta que, no mercado global de biodefensivos, microrganismos das espécies Metarhizonizople e Boveria baciana são amplamente usados para combater pragas e doenças. “O diferencial, no nosso caso, foi o fato de os isolados fúngicos virem de solos da Amazônia”, conta. O cientista explica que, ao longo da história evolutiva, fungos chamados entomopatogênicos desenvolveram a capacidade de infectar insetos combinando diversos mecanismos. “Eles são capazes de aderir à cutícula do inseto, de invadir toda a defesa imunológica, até causar uma infecção generalizada. Aí, se alimenta da massa corpórea desse inseto. ele é claramente um inimigo natural”, diz.
Ao se alimentar da biomassa do mosquito, o fungo se adapta ao ambiente do cadáver e, dependendo das condições ambientais, pode reiniciar o cliclo, infectando outros insetos. A estrutura infectante são os conílios fúngicos, esporos capazes de se manter tanto no solo quanto na água, caso a umidade e a luminosidade do local.
Atualmente doutorando do programa de pós-graduação Biodiversidade e Biotecnologia da Rede Bionorte, atrelado à Ufac, Mendonça relata que a equipe de pesquisadores está em busca da transição do produto da academia para o mercado. “É um processo um tanto árduo, considerando as nossas condições de pesquisa na Amazônia, mas tem sido bastante importante. Muitas vezes, as pessoas daqui, quando procuram algo efetivo para o controle do Aedes aegypti, só encontram produtos químicos, inclusive os que são tóxicos para uma série de insetos, alguns que podem ser até benéficos, como as abelhas”, destaca.
Agora, o pesquisador trabalha em um projeto de controle dos ovos e dos mosquitos adultos, além das larvas, com foco nas especificidades da região amazônica. “Estamos atuando no controle justamente dentro das condições ambientais da Amazônia, para que o nosso produto seja voltado diretamente para a população que sofre com o Aedes aegypti todo ano”, destaca. (Paloma Oliveto)
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