Aumento de exceções pode distorcer reforma tributária, dizem especialistas
Com a entrega do projeto de regulamentação da reforma tributária, foi aberta a temporada de lobbies. Diversos setores da economia começaram uma peregrinação pelos corredores da Câmara dos Deputados e do Senado na tentativa de entrar no regime de exceções, para obter desconto em cima da alíquota base do novo Imposto sobre Valor Agregado (IVA). Especialistas alertam que o aumento do número de exceções pode acabar distorcendo o projeto.
Um eventual aumento da lista de produtos ou serviços isentos, por exemplo, é um risco para a alta da carga para outros setores. Segundo o doutor em direito tributário Fábio Luiz Gomes, alguém vai ter que pagar a conta. “As isenções tributárias, ou a instituição de regimes específicos podem nos colocar em uma situação de fragilidade e tornar o nosso sistema complexo, portanto, quanto menos regimes específicos melhor, lógico, não excluindo aqueles sistemas específicos que sejam realmente imprescindíveis ao sistema brasileiro”, afirma.
As discussões sobre o tema foram travadas na última semana, devido às emendas emergenciais destinadas para os desastres no Rio Grande do Sul. O próximo passo será a análise do texto pelas comissões, grupos de trabalho que poderão sugerir alterações ao projeto, onde ganhará força a queda de braço.
Vão ser exigidas pelo menos três leis complementares para regulamentar todos os novos temas. Só a primeira delas — a Lei Geral do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), da Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e do Imposto Seletivo (IS), cujo projeto já foi entregue pelo Executivo ao Legislativo — tem 306 páginas e cerca de 500 artigos. As estimativas preveem alíquota de 26,5%, mas pode variar entre 25,7% e 27,3%.
Fora isso, um outro projeto vai tratar da atuação do Comitê Gestor do IBS e da distribuição das receitas do IBS entre os entes federativos, conforme informam o Ministério da Fazenda e a Câmara dos Deputados. O governo planejava entregar esse projeto na primeira quinzena de maio.
Para o advogado tributarista Lucas Ribeiro, CEO da ROIT, empresa de inteligência artificial para área tributária e financeira, está sendo propagada uma “simplicidade” que, na prática, mostra-se impossível de ser concretizada antes de 2033, quando se encerra o período de transição. “O secretário extraordinário da Reforma Tributária, do Ministério da Fazenda, Bernard Appy, disse à imprensa que o novo sistema não vai exigir nada mais do que apenas a simples emissão de nota fiscal”, lembra.
“Ora, essa simplificação, mesmo que fosse dessa forma, só começará a valer em 1º de janeiro de 2033. Mas, se fosse simples desse jeito, por que pelo menos três projetos de lei para regulamentar, com centenas de páginas e centenas de artigos?”, questiona Ribeiro.
Além disso, na Câmara e no Senado, os textos seguramente vão receber emendas, a acrescentar ainda mais exceções e particularidades. “Serão centenas de novas regras a serem interpretadas e aplicadas por quem, pelo Fisco sozinho? Como se fosse bem tranquilo combinar mais de 2 bilhões de cenários tributários possíveis para emitir uma nota hoje, somados às centenas de novas regras que estão por vir”, avalia.
Alimentos na mira
A isenção da cesta básica acabou se tornando um dos pontos mais polêmicos do novo regime tributário e alvo de embate direto com a indústria de alimentos. “Certamente a cesta básica será uma das principais discussões, especialmente pela exclusão das carnes da isenção de 100%”, destacou a advogada Mariana Ferreira, especialista em direito tributário do Murayama, Affonso Ferreira e Mota Advogados.
“O creditamento do IBS e da CBS também deverá ser questionado, em virtude da necessidade de comprovação do pagamento na etapa anterior. Os bens de uso e consumo que não gerarão direito de crédito, como plano de saúde, educação, seguros, também têm um forte apelo das empresas para ser revisto”, avaliou.
O governo sugeriu imposto zero para 15 produtos da cesta básica, como arroz, feijão, farinha, leite, açúcar e margarina. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) já afirmou que vai lutar para aumentar o número de produtos isentos. Outra lista teria redução de 60%, incluindo carnes bovinas, suína e de peixe e sal. E uma terceira, com “artigos de luxo”, teria alíquota normal. O imposto pago voltaria parcialmente para as famílias de baixa renda com renda per capita de até meio salário mínimo, o chamado “cashback”.
A bancada ruralista se posicionou contra o mecanismo de desconto proposto pelo governo e sinalizou que tentará reverter o dispositivo. “Reforçamos nossa posição sobre a desoneração da Cesta Básica, sem cashback, para famílias que necessitam de acesso à comida barata e de qualidade, como medida urgente e necessária para combater a inflação de alimentos”, destaca a FPA, em nota.
Difícil aplicação
Na visão de tributaristas, o cashback, destinado às famílias de baixa renda, é de difícil aplicação na prática, da maneira como foi apresentado. O mecanismo prevê a devolução de parte dos impostos pagos por famílias de baixa renda. Terão direito à devolução famílias que ganham até meio salário mínimo por pessoa, atualmente R$ 706, incluídas no Cadastro Único do governo federal (CadÚnico).
Entre os bens e serviços que contarão com o mecanismo estão a energia elétrica, água e esgoto, com proposta de devolução de até 50% dos tributos. No caso do gás de cozinha, o retorno pode chegar a 100%, e sobre os demais produtos o retorno será de 20%. Os únicos produtos que não contarão com o cashback são aqueles sujeitos ao Imposto Seletivo.
“O sistema é interessante, entretanto o problema será fazer com que ele funcione na prática. A previsão é que seja utilizada alguma base dos programas sociais já existentes tendo, ainda, a complexidade de como será realizado o controle e pagamento do cashback”, pondera Francisco Nogueira, sócio-fundador do escritório Gasparini, Nogueira de Lima e Barbosa Advogados.
Há dúvidas sobre o funcionamento do cadastro das pessoas de baixa renda e como e em quanto tempo essa restituição retornará ao contribuinte. “Além disso, deve ser levado em consideração que em muitos locais a informalidade na ponta do consumidor ainda é grande, impossibilitando a aplicação do cashback no mundo real”, completa.
Um outro ponto que deve gerar grande debate será a gestão integrada do IBS que será feita por um Comitê Gestor, em linhas gerais, são 27 unidades da Federação e 5.565 municípios, todos na busca de participar dessa gestão. “Existem muitos temas e detalhes que deverão ser discutidos e que, certamente, mobilizarão empresários, entidades de classe, profissionais especializados, governo e parlamentares”, diz Nogueira.
Planos de saúde
Outro burburinho na disputa diz respeito aos planos de saúde. O secretário extraordinário da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy, dedicou os últimos dias para rebater críticas de que os seguros ficarão mais caros com o novo regime tributário. As novas regras vêm sendo alvo de associações setoriais, porque a regra acabaria com a possibilidade de empresas que contratam estes serviços gerarem créditos para abater tributos — o que poderia desestimular a contratação.
Os planos de saúde terão desconto de 60% do IVA, assim, seu imposto ficaria em 10,6% sobre sua margem, que é a subtração entre o valor cobrado pelos que contratam os serviços e as cifras gastas com hospitais, laboratórios, medicamentos e outros insumos. No entanto, a norma impede que as empresas deduzam do cálculo do IVA os gastos com o plano de saúde corporativo dos funcionários.
O setor de seguros alega que a regulamentação impede que os empregadores aproveitem os créditos que serão gerados na aquisição de planos para os seus funcionários, o que significa que essas empresas não poderão abater o IVA pago na etapa anterior da cadeia.
No entendimento das seguradoras, esse mecanismo pode desestimular a contratação do produto como benefício aos funcionários. Elas ameaçam acabar com os planos de saúde, caso a norma seja mantida. Os funcionários terão a possibilidade de contratar por fora, no entanto o valor deve ser salgado.
“Apareceram notícias completamente equivocadas, não tem nenhum efeito em relação à tributação atual. Vai ficar 1% para cima ou para baixo”, rebateu Appy, que já definiu a questão como “tempestade em copo d’água”.
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