‘O Catar caçou meu irmão no Grindr — e quero ele de volta pra casa’
A família de um homem gay detido no Catar por suposta posse de drogas denuncia que ele foi vítima de uma armadilha através do aplicativo de encontros Grindr.
Manuel Guerrero Aviña, de 44 anos e com nacionalidade mexicana e britânica, foi abordado no aplicativo por um homem chamado “Gio”.
Eles então marcaram um encontro — mas, na verdade, ele foi recebido pela polícia e preso em fevereiro sob falsas acusações, disse o irmão de Manuel, Enrique, à BBC.
Manuel, que tem HIV, está sem sua medicação habitual, segundo a família, que quer que o governo do Reino Unido o traga de volta para tratamento.
A Anistia Internacional descreveu a experiência de Manuel na prisão como “nada menos que horrível” e afirmou que o seu julgamento foi “marcado por uma série de violações do devido processo legal”.
As preocupações são ecoadas por outras organizações de direitos humanos com as quais a BBC conversou.
As autoridades do Catar insistem que Manuel tem sido tratado “com respeito e dignidade”.
À primeira vista, “Gio” — que também usava o nome “Mike” — parecia com milhares de outros homens em aplicativos de namoro ao redor do mundo.
Seu perfil no Grindr, visto pela BBC, estava cheio de selfies na academia mostrando seu tanquinho. Seus interesses listados eram karaokê, futebol e Netflix.
O homem também tinha um perfil semelhante no Tinder, onde teoricamente sua identidade teria que ser verificada pela tecnologia de reconhecimento facial do aplicativo.
Enrique diz que seu irmão trocou números de telefone com o homem e o convidou para ir ao seu apartamento na capital do Catar, Doha.
Mas quando Manuel desceu ao térreo do seu prédio para encontrar com “Gio”, deparou-se com agentes da polícia do Catar, segundo Enrique, que afirma que imediatamente Manuel foi algemado.
A homossexualidade é ilegal no Catar, mas Manuel, funcionário de uma companhia aérea, viveu uma “vida normal” nos últimos sete anos e nunca teve problemas com as autoridades, diz a sua família.
As autoridades do Catar insistem que a detenção do homem foi “por posse de substâncias ilegais consigo e no seu apartamento” e que “nenhum outro fator foi levado em consideração”.
Manuel teria “reconhecido” portar substâncias ilegais, acrescentaram as autoridades locais: “Mais tarde, um teste de drogas deu positivo, confirmando a presença de substâncias ilegais, especificamente anfetaminas e metanfetaminas, no organismo do Sr. Aviña no momento da sua prisão”.
Enrique afirma que Manuel não consumia drogas e que foi “plantada” uma pequena quantidade de metanfetamina, a qual o homem foi “pressionado” a dizer que era sua.
A BBC News não conseguiu verificar de forma independente todas as alegações feitas pela família de Manuel. Muitas das acusações sobre o tratamento que ele recebeu após sua prisão ocorreram a portas fechadas e com poucas testemunhas.
No entanto, a família de Manuel apresentou uma cronologia detalhada dos acontecimentos. E relatos anteriores, tanto sobre o tratamento a pessoas LGBT como sobre o comportamento da polícia no país, sugerem que outras pessoas tiveram experiências semelhantes.
Enquanto estava sob custódia da polícia, Manuel teria testemunhado pessoas sendo “chicotadas nas costas” por agentes — e foi ameaçado com tratamento semelhante se não assinasse vários documentos.
Manuel disse à família que os documentos estavam escritos em árabe — língua que ele não consegue ler — e que não lhe foi dado acesso a um tradutor ou a qualquer aconselhamento jurídico.
Enrique conta que, quando Manuel contou a funcionários da prisão sobre o HIV, ele foi transferido para uma cela solitária. Além disso, sua medicação teria sido temporariamente suspensa como pressão para que ele compartilhasse informações sobre outros homens gays, o que ele se recusou a fazer.
O irmão disse à BBC que Manuel foi interrogado por horas.
Preocupações com a saúde de Manuel
A retenção de medicamentos na prisão é “moralmente intolerável” e já poderia ter gerado consequências muito graves para a saúde de Manuel, afirma a organização National Aids Trust do Reino Unido.
A instituição está pressionando o governo britânico a intervir e a levar Manuel de volta ao Reino Unido para receber tratamento adequado.
Ele foi informado de que enfrentará de seis meses a três anos de prisão por posse e consumo de drogas.
Mas, por enquanto, depois de ter passado 42 dias num centro de detenção no Catar, foi concedida liberdade provisória. Ele está hospedado com amigos enquanto espera por novas audiências.
O passaporte de Manuel foi retido — uma das condições para sua liberdade provisória é a proibição de viajar para outro país.
Dana Ahmed, pesquisadora da Anistia Internacional para o Oriente Médio, afirma que o tratamento na prisão e nas primeiras sessões de julgamento “levantam sérios receios de que Manuel esteja sendo alvo por conta de sua orientação sexual e esteja sendo coagido a fornecer às autoridades informações que poderiam ser usadas para seguir com a repressão a pessoas LGBT no Catar”.
A família de Manuel disse à BBC que o tratamento dele, prescrito por médicos britânicos, terminou em meados de abril. Ele agora tem que usar uma alternativa fornecida pelas autoridades do Catar.
Antes da sua detenção, Manuel estava sendo tratado com medicação antirretroviral que ele conseguia em viagens ao Reino Unido e ao México. Isso mantinha o vírus sob controle, impedindo a transmissão para outras pessoas.
Numa carta ao governo britânico solicitando intervenção, a National Aids Trust explicou que, ao só tomar os medicamentos esporadicamente na prisão, o corpo de Manuel pode já ter desenvolvido uma resistência — o que tornaria o tratamento menos eficaz e poderia ter implicações muito sérias para a saúde dele.
“Precisamos que Manuel tenha acesso ao tratamento, mas também acesso a conhecimentos médicos profissionais de um especialista em HIV fora do Catar para testá-lo e avaliar adequadamente suas futuras necessidades de tratamento”, afirma Daniel Fluskey, diretor de políticas da National Aids Trust.
O governo do Reino Unido afirmou que está apoiando um “homem britânico no Catar” e está “em contato com sua família”, mas não deu mais detalhes.
Mas a BBC viu uma carta na qual o secretário dos Negócios Estrangeiros, David Cameron, diz a um grupo de parlamentares preocupados com o caso que o governo leva a saúde e o bem-estar de Manuel extremamente a sério.
Cameron garante que está “acompanhando de perto o caso”, mas diz que o Reino Unido não pode intervir em assuntos judiciais de outro país.
Denúncias de perseguição e agressões
A BBC foi inicialmente informada sobre o caso de Manuel pela organização de direitos humanos FairSquare, cujo codiretor, James Lynch, é um antigo diplomata britânico no Catar.
“Desde o início, trata-se do status LGBT dele e do seu desejo de expressar isso e sua identidade. É disso que se trata este caso”, diz Lynch, que agora apoia a família de Manuel. “Ele é uma pessoa LGBT e foi alvo em um aplicativo de namoro.”
Para tentar verificar as alegações da família, a BBC também conversou com vários especialistas em direitos humanos.
O tipo de interrogatório pelo qual Manuel passou enquanto estava detido já foi documentado no passado.
Um relatório de 2022 da Human Rights Watch (HRW) que entrevistou seis pessoas LGBT no Catar descobriu que todos eles foram pressionados a fornecer informações que pudessem identificar outras pessoas como elas. Alguns foram agredidos fisicamente.
Rasha Younes, vice-diretora do programa de direitos LGBT da HRW, disse à BBC que as forças de segurança do Catar estão “detendo e abusando pessoas LGBT simplesmente pelo que são”, com maus-tratos que incluem bofetadas, pontapés e socos.
Ela acrescenta que agentes de segurança também “infligem abusos verbais, extraem confissões forçadas e negam aos presos acesso a aconselhamento jurídico, à família e a cuidados médicos”.
O último relatório sobre direitos humanos sobre o Catar elaborado pelo Departamento de Estado dos EUA afirma que, em 2023, “as pessoas LGBTQI+ enfrentaram discriminação na lei e na prática”.
“Não houve esforços governamentais para lidar com a potencial discriminação, nem houve leis antidiscriminatórias para proteger os indivíduos LGBTQI+ visados com base na sua orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero”, continua o documento dos EUA.
O tratamento dado pelo Catar às pessoas LGBT ficou sob evidência quando o país sediou a Copa do Mundo, em 2022.
Na ocasião, as autoridades do Catar disseram que “todos” eram bem-vindos — mas relatos de pessoas LGBT sendo “perseguidas e abusadas” são muitos, diz Nas Mohamed, ativista LGBT no país.
Mohamed, que tem asilo nos EUA, revelou sua sexualidade antes da Copa, mas continua em contato com muitos gays do Catar.
“Não sei se Manuel usava drogas ou não. Mas o fato de ele ter sido questionado sobre isso é porque ele é gay e foi ‘caçado’ no Grindr”, afirma.
Após a prisão de Manuel, o Grindr agora exibe um aviso aos usuários no Catar: “sabe-se que a polícia está fazendo prisões pelo aplicativo”.
Um porta-voz do Grindr diz que a empresa está “indignada” com o caso de Manuel Aviña e que leva muito a sério o seu papel “como conector da comunidade queer”.
“Tragicamente, ainda é ilegal ser gay em mais de 60 países, em muitos dos quais o Grindr é uma das únicas formas que os membros da comunidade LGBTQ+ têm de se conectar.”
Enrique diz que tem sido um momento difícil para Manuel e para toda a família.
“Quando o vi na prisão e ouvi o que tinha acontecido com ele, parecia um caso de outro século”, lamenta.
Ele espera que a atenção internacional e a ação de organizações como a FairSquare ajudem a fazer com que seu irmão mais velho seja tratado de forma justa.
Enrique diz que Manuel agora quer apenas uma coisa: ser levado de volta em segurança para o Reino Unido.
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