Por que preço do leite desabou, mas queijo e manteiga continuam caros?
“A desculpa para o preço dos derivados do leite subirem sempre foi o preço do próprio leite e o dólar. Pois bem, o leite está praticamente a metade do que era há um ano atrás, e o dólar está estabilizado faz tempo. Qual é a desculpa agora para o queijo custar 50 paus o quilo?”
O questionamento é de um consumidor de Botucatu, no interior de São Paulo, e foi publicado em fevereiro deste ano nas redes sociais.
É a dúvida de muita gente que chegou a pagar R$ 8 por litro de leite nos supermercados em meados de 2022 e, agora, paga entre R$ 4 e R$ 5, mas não viu uma queda semelhante no preço de derivados como o queijo e a manteiga.
No IPCA, índice de inflação oficial do país medido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por exemplo, o leite longa vida acumula queda anual de 7,9% até fevereiro, mas o queijo recuou apenas 0,82% no mesmo período.
Um levantamento da empresa de pesquisa de mercado Kantar Worldpanel mostra um quadro ainda menos favorável para o preço dos laticínios.
Entre janeiro do ano passado e igual mês deste ano, o preço médio por quilo dos queijos em geral subiu 9,7%, e o da manteiga, 12,3%, conforme esses dados.
A mussarela, tipo de queijo mais consumido no país e que representa mais de 60% do volume de mercado, ficou 3,7% mais cara no período.
A alta de preços foi maior para o minas frescal (19,7%) e os queijos especiais (20%), como brie, cheddar, colonial, cottage, gorgonzola, entre outros, segundo a Kantar.
Mas, em um momento em que os preços da manteiga e do queijo subiam nos supermercados, a vida não esteve nada fácil para os produtores de leite.
No ano passado, em meio a importações recordes de leite em pó, o preço médio do litro de leite pago ao produtor despencou.
Passou de R$ 3,57 para R$ 1,97 entre agosto de 2022 e outubro de 2023, uma queda de 45%, segundo a série histórica do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) da Universidade de São Paulo (USP).
Neste início de ano, o valor voltou a subir um pouco e ficou em R$ 2,14 em janeiro – ainda 40% abaixo da máxima recente de R$ 3,57 registrada em agosto de 2022.
Com a queda acentuada de preços, pequenos produtores de leite têm abandonado o setor no Brasil – fenômeno crescente ano após ano, e que acontece também em outros países.
No Rio Grande do Sul, por exemplo, o número de produtores de leite vinculados à indústria recuou 18% entre 2021 e 2023, passando de 40.182 para 33.019, segundo o Relatório Socioeconômico da Cadeia Produtiva do Leite da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Sul (Emater-RS).
Em relação a 2015, quando o Estado tinha 84.199 produtores, a queda é de 61% em oito anos.
O Rio Grande do Sul é o terceiro maior Estado produtor de leite do país, com participação de 12,4% da produção nacional em 2021, segundo o IBGE, atrás apenas de Minas Gerais (27,2%) e Paraná (12,5%).
Mas o que explica esse cenário contraditório? Por que o preço do leite desabou, prejudicando produtores, mas o preço do queijo e da manteiga não cai?
Por que o preço do leite desabou
Antes de entrar na questão do preço dos laticínios, é preciso entender por que o leite encareceu tanto no Brasil em 2022 e, depois, despencou no ano passado.
Entre os fatores que levaram à forte alta do preço naquele ano estão uma menor produção, impactada pela estiagem prolongada no Sul do país, como consequência do fenômeno climático La Niña.
Também pesaram uma forte alta de custos, principalmente dos grãos (usados para alimentar os animais) e dos combustíveis, impactados pela guerra na Ucrânia e pelo aumento das exportações, devido ao real desvalorizado à época, lembra Natália Grigol, pesquisadora de leite do Cepea.
A alta de preços incentivou investimentos na produção, mas, como a pecuária leiteira é uma atividade de ciclos longos, esses investimentos só começaram a se refletir em um aumento da produção em meados de 2023.
O crescimento tardio da oferta interna veio acompanhado, no entanto, de um forte aumento da importação, fruto de um ganho de competitividade do leite em pó oferecido por países vizinhos, como Argentina e Uruguai, em relação ao produto brasileiro.
Em 2023, o Brasil importou um recorde de US$ 853,6 milhões (cerca de R$ 4,3 bilhões) em leite, creme de leite e laticínios, exceto manteiga ou queijo, alta de 66% em relação ao ano anterior e maior valor da série da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) do governo federal.
O Brasil é tradicionalmente um país importador de lácteos, explica Grigol, porque, apesar de ser o quarto maior produtor de leite do mundo – atrás de Índia, EUA e Paquistão –, a produção nacional não é suficiente para abastecer o mercado interno.
“O problema é que, em 2023, muito rapidamente, as importações que correspondiam em média a 3%, 4% – nunca passavam de 5% – da nossa produção, chegaram a representar 9%, 10%”, diz a pesquisadora do Cepea.
“É uma situação que bota uma pressão [sobre os preços], em um período em que o consumidor ainda passava por um momento de recomposição de renda.”
Ou seja, o preço do leite caiu, num momento em que os brasileiros ainda se recuperavam do baque econômico da pandemia e controlavam o consumo. Foi uma combinação de fatores que prejudicou o setor leiteiro.
Mas, se o valor do leite desabou, por que o preço dos derivados não caiu?
O que diz a indústria
Na opinião de Fábio Scarcelli, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Queijo (Abiq) e membro do conselho da Viva Lácteos, associação que representa as maiores empresas de laticínios do país, a culpa pelo alto preço dos derivados está no varejo e não na indústria.
“Nós ajustamos o preço para baixo [em 2023]. O preço dos queijos caiu significativamente, porque sempre trabalhamos com planilhas de custos – a partir do momento que o preço do leite baixa, imediatamente nós baixamos nossos produtos”, diz Scarcelli.
O presidente da Abiq avalia que o problema seria, portanto, outro.
Scarcelli diz que os supermercados não consideram o queijo um produto “de alto giro”, que são aqueles consumidos quase que diariamente pelas pessoas e que costumam ser escolhidos muitas vezes pelo melhor preço.
“Por conta disso, eles mantêm margens [diferença entre custos e preços praticados ao consumidor] mais elevadas no queijo do que em outros produtos.”
Segundo Scarcelli, trata-se de uma forma de o varejo compensar perdas em produtos vendidos com margens mais apertadas, como arroz e feijão, por exemplo.
Em um produto vendido a R$ 100, o produtor rural fica com R$ 25, a indústria com R$ 25 e o varejo com R$ 50, exemplifica o executivo.
“Os varejistas ficam com a grande fatia da composição de preço final ao consumidor”, afirma.
“Sem entrar no mérito dos custos que eles têm – porque todos temos custos –, as maiores margens que se pode encontrar no mercado de queijos no mundo é a praticada no Brasil.”
Segundo o representante da indústria, se os supermercados reduzissem as margens, particularmente dos queijos especiais, as vendas aumentariam, o que beneficiaria toda a cadeia de laticínios.
A BBC News Brasil procurou a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) para responder às críticas do porta-voz da Abiq, mas a entidade informou que não comentaria a questão.
Segundo a Abras, a associação “não atua nesse ponto da precificação”, ou seja, não define como cada empresa associada decide a estratégia de preços ao consumidor.
Produtos caros para uma população pobre
Natália Grigol, do Cepea, observa que, embora os diversos produtos lácteos – leite UHT, leite em pó, iogurtes, manteiga, queijos, entre outros – sejam parte de uma mesma cadeia produtiva, eles são trabalhados pelas empresas de formas distintas, visando públicos diferentes.
Há produtos mais “comoditizados”, em que a marca é menos importante, e o consumidor compra mais pelo preço – caso do leite longa vida e da mussarela.
Outros produtos têm uma chamada “elasticidade-renda” maior. São aqueles que o consumidor compra quando tem mais disponibilidade de renda – caso do iogurte, do queijo e da manteiga.
“São produtos substituíveis – como a manteiga, que pode ser substituída pela margarina – e mais ‘nichados’, se pensarmos que a população brasileira é pobre, na média. Temos grande parte da população vivendo com dois, três salários mínimos no máximo”, lembra a pesquisadora.
“Os lácteos no Brasil ainda são um produto caro para as famílias. Não é à toa que, nos últimos anos, vimos aparecer nos mercados produtos ‘similares’.”
São exemplos dessa tendência produtos como a “mistura láctea condensada”, alternativa mais barata ao leite condensado; a “bebida láctea”, como opção ao iogurte; a “mistura láctea sabor requeijão”, entre outras.
A especialista concorda que o varejo tem seu papel no alto preço dos laticínios no Brasil. “Há uma concentração no mercado varejista que impõe uma pressão [sobre os preços]”, diz Grigol.
Segundo dados da Abras, os cinco maiores varejistas de alimentos do país representavam juntos 32% do faturamento do setor em 2023.
Além disso, observa a analista, há uma diferença de custos para o varejo entre produtos refrigerados e não refrigerados.
No caso do queijo, há também o custo da mão de obra empregada para dividir o alimento nas porções que são vendidas nas lojas.
“A partir do momento que esses produtos são transformados, passam a ser trabalhados, tanto pela empresa de laticínio, quanto pelo varejo, com estratégias diferentes visando o público-alvo”, afirma Grigol.
Essas diferenças ajudam a explicar porque os derivados do leite não baratearam na mesma medida que sua matéria-prima.
“A transmissão da oscilação do custo de matéria-prima para o consumidor é muito diferente, porque o processamento, a logística, o armazenamento mudam muito”, diz a analista.
Gargalos na cadeia produtiva
Tanto a pesquisadora do Cepea quanto o presidente da Abiq avaliam que as ineficiências da cadeia produtiva do leite são um dos problemas que impedem laticínios como queijo e manteiga de serem mais baratos no Brasil.
Grigol observa que, mundialmente, há desafios crescentes para a produção da matéria-prima. As mudanças climáticas têm aumentando os custos de produção do leite e levado a demanda a superar a oferta em escala global.
“Em muitos países, no entanto, há mecanismos para ajudar o produtor a lidar com as flutuações de mercado”, diz a pesquisadora
Ela cita recursos como seguro rural, derivativos (instrumentos financeiros usados para administrar os riscos da produção agrícola) e políticas públicas como subsídios e linhas de financiamento específicas para o setor.
“No Brasil, ainda carecemos de trabalhar essas imprevisibilidades”, avalia.
Para Grigol, ações protecionistas, como aumentar impostos de importação do leite em pó, não resolverão o problema.
Em outubro, o governo federal aprovou uma medida (decreto 11.732/2023) com objetivo de desestimular importações de leite em pó de países do Mercosul, que estabeleceu que importadores passam a ter menor acesso a créditos tributários.
O governo também aprovou o aumento do imposto de importação de 12% para 18%, pelo período de um ano, para alguns produtos lácteos. E anulou uma redução da Tarifa Externa Comum (TEC) em 10% para 29 itens lácteos.
Em março deste ano, foi a vez do governo de Minas Gerais retirar as empresas importadoras de leite em pó do Regime Especial de Tributação do Estado.
“São medidas que não trabalham as causas da nossa vulnerabilidade. Para isso é preciso aumentar capital – humano e financeiro – dentro das fazendas”, sugere a pesquisadora do Cepea.
Em nota, o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) informou que, desde que foram identificadas dificuldades na cadeia produtiva leiteira, o governo federal vem tomando medidas de socorro ao setor.
Entre essas medidas, a pasta cita a criação de um grupo de trabalho com objetivo de propor medidas conjunturais e estruturais para o setor.
Menciona ainda a assinatura do decreto 11.732/2023; a disponibilização de R$ 200 milhões para apoio à comercialização de leite em pó como uma medida emergencial de socorro aos produtores de leite; além dos desestímulos tributários à importação.
Para Fábio Scarcelli, da Abiq, uma medida importante para o setor seria um aumento da escala das fazendas de leite.
Segundo ele, isso reduziria os custos de captação da matéria-prima para a indústria e poderia resultar em produtos nacionais mais baratos para o consumidor final.
“Precisamos ter mais produtividade, fazendas com produções maiores. É muito difícil administrar produtores de 100, 150 litros [por dia]. Com todo respeito à agricultura familiar, mas, para a indústria, é um custo muito alto”, diz o executivo.
Uma pesquisa da MilkPoint Ventures mostra que esse movimento de concentração do setor já está acontecendo no país.
O levantamento analisou uma amostra de 41 empresas de laticínios, sendo 17 cooperativas e 24 não cooperativas, representando um terço (32%) da produção de leite formal do país.
Segundo essa amostra, os 4,8% de produtores de leite com capacidade acima de 2 mil litros por dia (ou seja, os grandes produtores) produzem quase metade do leite do país (46%). Outros 43% da produção vêm dos produtores de médio porte.
Já aqueles com capacidade abaixo de 200 litros por dia (os pequenos) são 61% do total de produtores, mas respondem por apenas 11% do leite produzido.
“Isso permite inferir que os produtores de menor porte, ainda que relevantes do ponto de vista numérico e que certamente demandam políticas públicas a eles orientadas, serão cada vez menos relevantes do ponto de vista de abastecimento”, escrevem os pesquisadores no estudo da MilkPoint.
O que dizem os pequenos produtores
Paulo Aranã, de 30 anos, faz parte da terceira geração de sua família que trabalha com leite.
Seu avô comprou a fazenda Ipê, em Itambacuri, no interior de Minas Gerais, em 1963. Os pais assumiram o negócio em 1989. Ele trabalha ali desde 2015 e está à frente da operação há sete anos.
Com 60 vacas em média no curral, a fazenda produz entre 400 e 600 litros de leite por dia, vendidos para uma cooperativa local que produz derivados como manteiga, mussarela, queijo coalho e doce de leite.
“Não é uma cooperativa muito grande, mas é muito bem estruturada e uma das últimas que sobrou na nossa região”, diz Aranã.
Ele lembra que muitas cooperativas do setor quebraram nos anos 1990, quando as multinacionais do leite entraram no mercado nacional oferecendo aos produtores valores muito maiores pela matéria-prima do que as cooperativas podiam pagar.
“Quando os produtores migravam das cooperativas para esses laticínios, as cooperativas quebravam e, então, os laticínios derrubavam os preços. Os produtores se viam então sem alternativa, porque eles dependem da cooperativa ou do laticínio para beneficiar o leite.”
Diferentemente do representante da indústria, o produtor avalia que a crescente concentração do mercado leiteiro em grandes fazendas produtoras é uma armadilha e pode, na verdade, deixar leite e laticínios mais caros para o consumidor.
Segundo o produtor rural, para a indústria e as grandes empresas de laticínios, a saída dos pequenos do mercado é vista como algo positivo.
Isso porque, com isso, essas empresas passam a negociar com menos gente, fazem compras em volumes maiores e economizam no transporte e logística.
“Para eles é mais fácil e mais barato trabalhar desse jeito. Mas, para o consumidor, é um perigo, porque ele vai ficando refém de pouca gente”, avalia Aranã.
“A indústria de laticínios já é muito concentrada, agora está acontecendo a concentração dos produtores. No fim das contas, vai ficando pouquíssima gente produzindo tudo. Todo mundo fica dependente deles e, quando não houver mais alternativa, eles podem cobrar o quanto quiserem.”
O produtor afirma ainda que, quanto mais distribuída a atividade, maior é a distribuição de renda, da terra e a geração de empregos.
“O grande produtor geralmente acaba empregando muito menos, porque se trata de uma produção altamente mecanizada”, diz Aranã.
“Em vez de ter mais gente participando da atividade e o dinheiro circulando entre mais pessoas, entre mais municípios e rodando mais na economia, ele vai ficando concentrado no bolso de pouca gente.”
Para Natália Grigol, do Cepea, a questão da renda é também crucial para ampliar o consumo de laticínios no Brasil, o que beneficiaria toda a cadeia leiteira.
Segundo a Abiq, o brasileiro consome atualmente cerca de 6 kg de queijo por ano, muito abaixo dos 11 kg da Argentina e dos mais de 20 kg de países da Europa.
“Os governos, em diferentes esferas, podem trabalhar o incentivo ao consumo público, através das compras públicas. Mas a ferramenta mais efetiva [para aumentar o consumo de laticínios no Brasil] são todas as medidas que levarem o país ao crescimento e ao aumento de renda da população”, diz Grigol.
*Com a colaboração de Caroline Souza, da equipe de Jornalismo Visual da BBC.